quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Prisão


19 anos, corpo alto e esguio, barba por fazer e roupas largas. Já deveria ter saído da prisão da adolescência. Não apenas da prisão dos pensamentos, mas aquela que os pais empregam. Isso o limitou bastante, pois essa privação não lhe permitiu ter as experiências que tinha que ter passado. Assim, não é um cara dedicado muito a pensamentos e reflexões, mas sim, em sentimentos. E por se sentir preso ao seu quarto, seu pequeno mundo, cercado de jogos eletrônicos e playboys, passa, então, a dedicar aos seus sentimentos e, atualmente, se dedica a raiva. Raiva de suas limitações. Mesmo sem a vivência, que sabe que deveria ter, percebe em si uma imaturidade não natural. Sabe, também, que a forma como os pais lhe trata como um pequeno menino ou grande idiota está errado.

Vive naquela rotina de aula-casa-jogos-masturbação. Nunca teve uma mulher e, disso, só sentiu, até hoje, o corpo de suas primas em abraços nas festas de família. Isso é outra coisa que o perturba. Ultimamente anda pensando sobre essas coisas com uma freqüência anormal, aterrorizante. Aumentando gradativamente seus sentimentos ruins, alimentando seu desprezo por si mesmo. Isso porque observa os colegas, com suas vidas absurdamente normais, falando sobre garotas, bebedeiras, noites viradas, notas baixas e falta de grana. Tornava-se cada vez mais quieto, cada vez mais fechado, mais revoltado.
Sua cabeça maquinava planos e idéias para conseguir sair desse buraco. Tardes, que já foram dedicadas a jogos e internet, agora passavam na cama, ele olhando para o teto com os pés na parede, tentando achar uma fuga para aquilo. Tentava achar um jeito de provar para seus pais que ele, com aquela idade e aquele tamanho todo, já era capaz de se virar sozinho, que já estava caminhando a ser um homem. Mas quanto mais pensava, mais nervoso ficava, pois ao pensar em “comos e ondes” mais percebia que, de fato, essa sua prisão, surtiu um efeito muito grande nele. Cada vez mais, suas conclusões o levavam a crer que, até agora em sua vida, não sabia de nada profundamente, nada além de sua rotina. Daí partiram as dúvidas e, como numa montanha russa, suas conclusões deram uma grande reviravolta. Notou que a quem deveria provar alguma coisa, seria para ele mesmo.

Meses caminhavam, ainda em conclusões vazias. A raiva era quase uma cólera. Ainda não conseguia reparar essa situação, que o incomodava cada vez mais. Em tentativas recentes de tentar fazer alguma coisa diferente, era mais repreendido, mais recriminado. Sentia a cerquinha cada vez mais fechada, menor. Suas opções estavam acabando.

Num sábado, à noite, decidiu que deveria sair com seus amigos, seus colegas. A resposta que recebeu se limitou a apenas um “não” que seu pai praticamente a cuspira enquanto assistia à televisão. Sem ao menos o olhar na cara. Sem um pingo de respeito. Limitou-se a abaixar a cabeça e ficar parado ali, respirando abrutalhadamente de raiva. Àquele instante pareceu uma eternidade, sua cabeça rodava em milhões de pensamentos pesados e carregados de raiva e rancor. Encaminhou-se a cozinha, com aquela tranqüilidade que só o desespero é capaz de dar. Abriu a gaveta de talheres e pegou uma faca que sua mãe usava para limpar a carne. Olhou seu reflexo nela. Viu sua imagem e sentiu ainda mais seu remorso, sua fraqueza.
  
A mãe entra na cozinha e se depara com essa cena. A cabeça dele virou calmamente, sobrecarregada de tensão e terror. Era tão forte que era praticamente palpável. Na porta da cozinha, sua mãe gemia em desespero. O som fez o rapaz sorrir e seu pai despertar. Veio resmungando um “mas que porr...”, mas ao visualizar a peça que ali encontrava, parou, chocado. Ainda sorrindo, ele estende seu braço esquerdo fazendo com que a manga de sua blusa deixasse seu braço nu. A faca empunhada na mão direita se dirige tranquilamente no pulso desprotegido. Ele ainda sorri, um sorriso que demonstra vários sentimentos, várias core. Seu pai teve o ímpeto de dar um passo, mas bastou um olhar do rapaz para que o impedisse. A faca encostada no pulso passa a deslizar pela parte desprotegida do braço. Um pouco mais de força e a primeira gota começa a escorrer pelo braço. Ele ainda sorri. A mãe desliza pelo portal, caindo de joelhos perante o desespero. O pai balbucia alguma coisa, mas pouco se entende. A faca mais uma vez dança, mais um corte, mais sangue. Agora é silêncio e dor. O corte foi mais profundo, o que incondicionalmente fez os olhos dele lacrimejarem, mas seu rosto permanecia o mesmo, ainda com aquela expressão. Aquele pânico causado só o alimentava mais. Teve ali uma sensação de controle que nunca sentiu, era reconfortante, forte. Outro corte foi criado, dessa vez maior, mais comprido. Sua mãe segurava o rosto com as duas mãe, tapando os olhos perante sua impotência. Ele olha para ela tentando provocá-la mais. Essa distração foi suficiente para que seu pai o atacasse. Segura seu braço e lhe desfere um soco na cara, causando um reflexo no garoto, um impulso. Os dois caem no chão, agora há sangue na camisa do pai. Mais um soco na cara atordoa o rapaz, amolecendo a força de sua mão, deixando a faca cair. Outro soco na cara.

Agora ele está lá, sentado novamente no quarto. Não no seu quarto. Não tinham seus games e pôsteres, nem seu armário com garotas nuas em revistas. Apenas uma cama e uma janela. Braços amarrados. Estava só. E sua boca, sem alguns dentes, ainda pronunciava aquele sorriso...

domingo, 9 de outubro de 2011

Amada

Lá está ele, sentado em escadas de um prédio comercial, sozinho, cigarro na boca e fones de ouvindo cuspindo letras pesadas diretamente pro seu cérebro. Seus pensamentos nada mais são que uma poça rasa na qual ele brinca com os dedos. Figura diferente das demais, não apenas por seu casaco preto e suas botas velhas, traz consigo um semblante sério e corpo curvado, que demonstram, de certa forma, suas experiências de vida, mesmo que sentado com seu jeito relaxado, caricato. Olha pro céu, naquela noite escura, procurando estrelas, mesmo com o céu coberto de nuvens. Os árabes dizem que não importa o tamanho das nuvens, pois sempre haverá um céu estrelado. Assim, procura. Estranhamente com um sorriso no rosto ou, talvez, um sorriso estranho.
De repente, seu corpo se alonga, como numa espreguiçada bizarra, espontânea. Joga a bituca na rua e, com um visível esforço, levanta. Caminha aparentemente sem rumo, de cabeça baixa. Um gingado meio mole, mas sem muitos movimentos, marca seus passos. Mãos nos bolsos do casaco, contraindo e relaxando, demonstrando tensão ou aflição, talvez até uma vontade, mas ele mesmo não sabe o que faz. Só permanece com as mãos dentro dos bolsos, escondendo essa mania que tem. Passos sem rumo, mas que lhe fazem bem. Ainda não pensa em nada específico.
E, enfim, ela aparece.  Sua expressão séria se desfaz. Parado, olha mais uma vez pra cima, mas agora com mãos livres, abertas. Ela faz bem pra ele de forma que poucos entendem, que poucos sentem. Pega mais um cigarro e continua sua caminhada, sabendo que quanto mais caminha, mais vai em direção a ela. Sente o vento lhe acariciando o rosto, que agora está erguido, aparentando orgulho, uma pitada de leveza. Já é possível senti-la, fazendo seu corpo se arrepiar violentamente, mas sente prazer... Seus pensamentos agora acham um foco, indo em direção a prazeres sexuais misturados com álcool. Nestes momentos, nos quais surfa em lembranças e pensamentos, é quando ele se sente completo, perfeito, livre. Ela sempre fez isso com ele, sempre alimentou esse instinto. Por isso pra ele, ela é como um vício, uma droga que dá uma coisa única nele ou para ele. Se depara com seu carro e resolve sentar no capô, para continuar sentindo ela sobre seu corpo. Seu cigarro se apaga, joga fora, põe as mãos no carro e cabeça pra cima. Está quase trepando nesse momento, enquanto ela escorre pelo seu rosto, por seu pescoço e dentro de sua blusa. Pega sua chave e apenas vai embora. Pra algum lugar, qualquer lugar. Basta apenas que a chuva continue caindo. Acompanhado.